Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

A mãe, ferida por uma existência sem conexões duradouras com parceiros e parceiras, transfere para a filha única a ideia de que a vida da filha será uma reprodução da sua. Elenca similaridades entre os seus dramas e o dela, estabelece parâmetros de felicidade insuficiente, evoca a decepção amorosa que sofreu mais recentemente para justificar as falas pessimistas sobre o futuro da filha. A mãe entrelaçou a filha no seu enredo singular de insatisfação e viu a história da outra ser contaminada como quem despeja veneno numa taça de vinho.

Um pai ferido por uma existência sem conexões duradouras transfere para o filho único a ideia de que a vida dele, do filho, será uma reprodução da sua. Elenca similaridades entre os seus dramas e o dele, estabelece parâmetros de felicidade insuficiente, evoca a decepção amorosa que sofreu mais recentemente para justificar as falas pessimistas sobre o futuro do filho. O pai entrelaça o filho em seu próprio enredo singular de tristeza e despeja gotas de lama no copo de água filtrada do filho.

– Filha, comigo também foi assim, não vai dar certo mesmo.
– Filho, sinto muito por você estar vivendo este drama que conheço tão bem.

A ideia de que filhas e filhos são reproduções nossas pode ser a maior prova da incapacidade humana de colocar-se no lugar do outro ou adentrar emocionalmente no sofrimento alheio – o que alguns poderão sintetizar com o duo empatia e compaixão. Particularmente, acho improvável que seja possível ou viável que nos coloquemos no lugar do outro. E atribuo justo a isso a qualidade mais humana dentre as qualidades humanas que temos: a de reconhecer a alteridade.

A história do outro é a universidade menos hermética que há. Prestar atenção ao que não mora na margem do nosso umbigo (não é possível que Caetano não tenha uma música que fale disso) torna-se indispensável para quem deseja ser gente, apesar de ser mãe e pai.

Vejo na ação materna e paterna o convite mais extremo a sermos isso. Humanos.

No entendimento que apesar da sua dor ser tão profunda, mãe, ou tão frustrante, pai, a criança que vem não terá obrigação alguma de seguir seus passos, de carregar também consigo o que na sua vida desandou, a liberdade torna-se viável. Uma criança, um adolescente, um jovem adulto, um adulto, uma pessoa madura que constrói seu caminho sem precisar atender a esta demanda, mãe e pai, é um Sujeito. Seja, a partir daí, apenas o Outro mesmo.

Escrevo isso como quem vomita um vinho vagabundo nessa noite de quinta-feira depois de enviar uma carta, mais cedo, que recebeu uma enxurrada de respostas e dentre elas, uma que dizia assim:

"Meu pai se matou. Meu padrasto se matou. Meu irmão tenta se matar mês sim, mês não. Sua carta me lembra do desejo que tenho que seguir vivo, o mais vivo que eu puder, nem que seja para negar a história dessas pessoas".

Machado de Assis termina uma das suas muitas obras-primas com a frase citada no título desta carta. Que seja o começo de algo novo. Quem sabe uma vida.

Pedro Barros Fonseca

pedro fonseca

pai de João, Irene, Teresa e Joaquim.

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Buritis.