Não vou escrever sobre o amor hoje, me desculpem.

O que se espera para hoje de uma escrita é que contenha a palavra amor. Um parágrafo que adjetive, qualifique, engrandeça a presença daquela pessoa que já é imensa em nós. A lauda impossível, que defina e explique por que razão essa manifestação majestosa existe entre nós.
Fracassamos constantemente em dias assim, tanto pela expectativa por algo novo que seja dito ou escrito sobre isto que é o amor, quanto pela exacerbada quantidade de tentativas que tentam se distinguir – e no fundo compõem uma mensagem única que poderia caber em três ou menos palavras.
Me vejo tentado, sempre, em datas comemorativas como esta de hoje, a ser o chato-crítico-homem-escritor que pondera, busca uma alternativa, elabora, pensa em silenciar como um gesto político que combate o neoliberalismo e suas implicações sociais e emocionais. E depois – irresistivelmente – cedo ao lugar mais comum possível.
Escrevo sobre o amor.
Uma noite, em Vitória do Espírito Santo, liguei para Lua num rompante romântico e saudoso:
– Você viu a lua hoje, olha lá fora agora, corre, está linda, não paro de pensar em você.
– Queria te pedir para você não ligar mais, voltei meu namoro com Tibério.
Não sei quem aqui já abriu um chuveiro esperando água quente e recebeu granizo na cabeça.
Vez por outra esse som das nossas vozes ao celular volta às minhas células e dou risada do rumo tortuoso que uma música pode tomar quando o arranjo vai ganhando novos contornos, acordes, silêncios, quando instrumentos são adicionados e trazem uma sonoridade inimaginável, e quando as próprias vozes ganham o lugar certo na canção, entremeando tudo que a compõe – e não colocadas como uma sobreposição grotesca, com volume acima de tudo e de todos.

Dou risada porque percebo que um diálogo honesto é capaz de dar um mata-leão no amor, deixá-lo adormecido, inconsciente, mole.

Se em 17 anos de casados temos uma história escrita que define a complexidade desta relação que acordou do desmaio sem saber onde estava, preciso alertar a quem nos conhece pouco que esta mesma história é a lauda da desromantização do amor, no seu íntimo.
Aliás, uma oportunidade para que eu fale sobre nossa intimidade sem o menor pudor, aqui. Lua e eu nos separamos, em algum momento dessa história – e talvez tenha sido até aqui o maior aprendizado possível sobre o que é mesmo relacionar-se. Nossa ruptura não foi uma telefonema em noite de lua cheia. Foi um drama que escolhemos atravessar da forma mais humana que conhecemos, com nossos repertórios de vida. Estar aqui e poder olhar para ela logo ali, balançando os pés enquanto também escreve algo na sua cadeira de trabalho, saber que ela existe, saber que a gente persiste é saber que um mundo resiste em nossos desejos comuns e incomuns. E se isso não for um belo sintoma vital, desconheço um outro pulso e pulsação que demonstre que estamos, mesmo, vivos.
O processo de fazer do romance um objeto de consumo alheio é tentador, pensem bem. Quantos casais hoje não estão passando na sua timeline do Instagram, inclusive nós mesmos, Lua e eu? O amor é bonito demais para ser guardado em cofres. Por outros lados, o caminho árduo de fazer do romance uma escrita mais larga, com todos os seus dramas, comédias, aventuras, suspenses e terrores exige um esforço muito maior, porque neste caso, a tentação primeira é pensar que se ele, o amor, dá trabalho demais, talvez não valha a pena.
Amar dá trabalho demais. Vale a pena demais.
Enquanto cedo conscientemente à escrita de uma carta de amor que não pretende ser nada a mais que isso mesmo, uma carta de amor numa data comemorativa, sou tomado por um inconformismo que me formiga as mãos, os pés e a alma. Um dia esse amor irá acabar. Porque não há possibilidade de que seja mesmo um amor que dure para sempre. Nós não iremos durar para sempre. Nós vamos morrer. Um antes. Outro depois. E nesse intervalo, talvez quem esteja com vida encontre um novo amor. E uma nova história, com tempo mais curto, quem sabe por isso com uma escrita mais visceral, acelerada, intensa, apaixonada. E àquele que partiu, caberá a memória das páginas amareladas de uma vida pulsante que ficou para trás, que traz afago, afeto, sorriso e lágrima, mas já não está mais ali para sentir os cheiros, provar os beijos, encontrar os corpos, sonhar os sonhos.
Desromantizar o amor, para você que chegou com pressa ao parágrafo acima, não é naturalizar a morte, o luto, o adeus. É abrir o capítulo inevitável deste livro onde lemos que este amor não é soberano, imortal ou único somente por estarmos vivos. É o capítulo que lembra do tanto de trabalho que dá escrever com caneta e não poder apagar e, ainda assim, seguir escrevendo – sem saber o que está sendo escrito bem ali, na mesa de trabalho da outra pessoa que balança os pés. É tomar a dura paulada da consciência que nos relembra que o amor imortal só cabe mesmo a Sandy e Júnior.
Estou hoje aqui escrevendo e vendo Lua balançar os pés e lembro que foi exatamente assim que a vi pela primeira vez. Uma pessoa completamente diferente do que é hoje. Uma pessoa exatamente igual ao que era naquela noite, há 25 anos.
A desromantização do amor talvez seja essa realidade brutalmente delicada: se existirmos e persistirmos aqui nesta relação, o mundo irá tratar de resistir às nossas idas e vindas, mudanças e permanências, quedas e voos, afastamentos e agarramentos, filhos que nascem e filhos que não chegam, mas nos habitam.
A cada mata-leão que damos um no outro, somos convidados ao delírio da inconsciência momentânea que um diálogo forte pode nos provocar. E se há uma coisa que aprendemos a equilibrar com tantos momentos de tesão, prazer, alegria, euforia, êxtase, dança, gozo, essa coisa é o diálogo honesto, doa em quem doer, por termos aprendido que depois da dor vem, inevitavelmente, um despertar. Uma tontura gostosa, uma lombra, um labirintite expressa que não nos nocauteia, mas nos recobra lentamente a consciência de que somos assim, regidos por esse sentimento magicamente tangível e subjetivíssimo.
Escrever uma lauda sobre o amor extrapola a minha existência chata-crítica-masculina-pretensamente literária, porque me entrego sem vergonha alguma, nesta data comemorativa, em escrever palavras desconectas para quem não viveu a nossa história (perdoem por isso), e que fazem tanto sentido para mim.
Num dia dos namorados, rasgo a cartilha da desromantização, queimo as teorias sociopolíticas do tema, me entrego sem piedade de mim mesmo ao pensamento mais simplista que me vem agora quando penso nesta namorada que balançava as pernas quando nos conhecemos, que balança as pernas agora enquanto escrevo, que balançará as pernas quando tiver vida pulsante para entregar ao mundo, que resiste.
Cedo e respeito a única vontade que me vem agora, do fundo de algum lugar.
Escrever um texto sobre uma vida que pretendo que dure muito, e que se não durar, terá durado o suficiente para ter sido uma história de amor.

Pedro Barros Fonseca

pedro fonseca

pai de João, Irene, Teresa e Joaquim.

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