Buritis.

   Estava perto da morte, pensei. Ainda faltava um dos seis andares que escolhi subir de escada pela demora insuportável do elevador – certamente preso num andar qualquer enquanto um casal se despedia, combinava do jantar, discutia ainda a relação, arrumava as mochilas das crianças que não haviam sido arrumadas na noite anterior porque a relação já estava sendo discutida ontem. Ofegante, gelado, dei de cara com a faxineira na porta. Socorro. O nome-prenúncio. Oi, Socorro. Enveredei pelo corredor, bati na porta do quarto, tentei abrir, trancada. Não sei o que aconteceu, por isso pedi para a moça que trabalha com ele entrar em contato com você. Tudo bem, deixa eu ir lá.
    Meia hora antes eu havia acabado de pegar a primeira de muitas xícaras de café. Xícara, modo de dizer, copinho plástico vagabundo daqueles que sempre pego de dois em dois por medo de furar o fundo com a temperatura do café. No primeiro gole, o primeiro toque do celular. Número desconhecido, voz desconhecida. Pedro, aqui é Bia. Estou achando estranho que Homero ainda não tenha chegado. Não é costume dele, dia de reunião de pauta, sempre chega antes de todo mundo. Liguei no celular, desligado. Liguei na casa dele, atendeu Socorro. O motorista do jornal está lá embaixo do prédio e também não conseguiu contato antes por telefone. Por isso te ligo. Agradeci e desci o elevador até o subsolo com o subconsciente pensando em desmaio, amante, bebedeira, cansaço, depressão. Em meia hora estou lá. A caminho liguei para Marinês. Mãe, estou indo na casa de Homero, recebi um telefonema – e contei.
    Bati na porta do quarto com força. Nada. O silêncio quando vem de dentro de um quarto que não vemos é uma imagem barulhenta. Chutei a porta que escancarou a cena.
    Deitado, completamente coberto pelo lençol primo do copinho de café, vagabundo e útil. O volume das mãos sobre a barriga. Apenas o pescoço e a cabeça de fora. Na mesa de cabeceira, uns poucos livros e muitas caixas vazias de remédio, uma garrafa deitada de água, comprimidos pelo chão, um rasgo de papel e uma caneta Bic parente do copinho e do lençol. O silêncio por dentro era ensurdecedor. Socorro – falei como quem quer gritar. Ela estava atrás de mim, na porta, com as mãos na boca. E atrás dela, Marinês, que havia acabado de chegar, com as mãos na cabeça. Minutos depois, dois enfermeiros sem rosto com as mãos dispostas a passear pelo pescoço, pés, pulso. Um deles correu sem palavras ditas para fora do quarto, trouxe uma cadeira de rodas e sei que me olhou no fundo do olho, ainda que eu não lembre dos seus olhos. Você nos ajuda?
    O peso de uma existência entristecida, desprovida dos afetos, silenciosa e ensimesmada faz o corpo tombado parecer uma árvore que desprende suas raízes e desiste da terra. Socorro, Marinês. Homero já na cadeira, silenciosamente pendulando. O elevador já estava no andar. Desci junto, apesar da escada estar disponível sem obstáculos. A ambulância já estava aberta, a sirene ligada. O motorista do jornal desviou de mim seu olhar. O porteiro colocou as mãos nos bolsos. Sem ajuda minha, os enfermeiros deslocaram a árvore da cadeira para uma maca, da rua para o interior. Segui o caminho inteiro atravessando os sinais vermelhos no vácuo do veículo ágil e barulhento, sendo xingado aqui e ali por motoristas que me viam como um aproveitador do abre-alas no caos do trânsito recifense. Era de se invejar mesmo que alguém pudesse não ficar preso nos engarrafamentos do começo de dia, todo dia, em todas as partes da cidade. A ambulância entrou pelo portão que não me cabia, fui mais adiante, peguei o cartão na máquina que me deu bom dia e boas vindas, a cancela abriu, parei, corri. 
    O senhor está acompanhando alguém? Homero, acabou de chegar na ambulância pelo outro portão, vermelha, sirenes ligadas, dois enfermeiros sem rosto. A recepcionista tomava café num pequeno copo de plástico e anotava meus dados com uma Bic azul. Você é parente dele? Filho. Peço que aguarde que em breve o doutor vai trazer informações. Pode sentar numa das cadeiras. Obrigado.
No Parque Guimarães Rosa, era possível enxergar a fronteira antes invisível. Sentei para ver. Do lado de lá da pista de terra batida, resquícios de uma queimada controlada e os buritis ainda de pé. Do lado de cá da pista, um trator solitário arrancava as poucas árvores que sobraram. Cutucava sua base e afastava-se, esperando apenas que caíssem mudas. Toda vez que dava ré, soava um apito parecido com uma sirene. Cada vez que uma árvore caía, pássaros saíam em disparada para galhos ressecados vizinhos, gritando em canto. O silêncio e o barulho convivem nas ruínas e mortes.
    O doutor parecia estar preso esperando algum elevador, não chegava nunca. De pé, atendi Marinês. Nada ainda. Socorro. Ainda não. Bia. Ainda. Coloquei as mãos na boca. Seca. Coloquei as mãos na cabeça. Quente. Coloquei as mãos nos bolsos. Num deles, o papel rasgado que estava na mesa de cabeceira.

O tempo tudo cura.

Li e sentei. Nenhum buriti à vista.

Pedro Barros Fonseca

pedro fonseca

pai de João, Irene, Teresa e Joaquim.

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Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

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