Vini.

Vini, não nos conhecemos. Nunca te vi jogar uma partida, sei que você nunca me viu escrever. Estamos separados pelas linhas do campo e do caderno. Estes dias, te vi muito. Para onde eu olhava, lá estava você. Chorando, recebendo um mata-leão, enfurecido, envergonhado. Mas também sorrindo, orgulhoso, poderoso. Lá estava você, onde quer que eu estivesse passeando meu tempo, onipresente em seu drama que não é nada particular. 

Vi o drama de tantos milhões na sua pele e por isso aqui eu vim, Vini.

Essas últimas noites, tenho percebido crianças circulando pela casa, depois que as minhas filhas e filhos dormem. São crianças-em-vento, que transitam pelo silêncio noturno da minha casa diariamente barulhenta em busca de um brincar qualquer, em paz, quando ninguém as nota. Só que elas ainda não notaram que tenho dormido pouco e, vez por outra, se revelam entre as paredes da sala e da cozinha, correndo ao redor dos vasos de planta, mexendo com papéis quietos em cima da mesa amarela. Não percebem meu corpo enquanto percebo suas almas. Uma amiga de longe, que se comunica comigo via mensagens de áudio, exclusivamente, tratou de diagnosticar a presença destes pequenos e sentenciou na frase final de uma mensagem de um mês atrás: 

– São Erês que estão te lembrando a importância de ser quintal, para além de casa.


Estava com este último áudio dela como quem se abraça a uma despedida da mãe. Ouvi várias vezes as partes que antecedem essa, pensando nas sutilezas das palavras dessa Mãe, me contando sobre mim. E ontem, depois de enxergar a sua presença nas salas da minha retina em todas as telas que passeei, ouvi várias vezes apenas este final. 

– Os Erês, eles tão te lembrando de ser quintal, viu? Não só casa, não. Quintal.


É assim que ela diz o que tem que ser dito, falando e ritmando as palavras como quem manda um batuque pelo zap.

Morei na Espanha e a despeito de tanta coisa maravilhosa que este país tem e que carrego como memória, sofri ao ver o racismo como traço histórico secular perverso, que acompanha esse povo nas suas missões destruidoras pelas Américas, e nutrido contemporaneamente por uma sociedade violentamente católica – com todas as nuances que sabemos desta instituição Igreja. Diante da riqueza do outro, o colonizador espanhol saqueia, mata, rouba, enfia uma cruz no chão alheio, diz: este quintal é meu. E depois reza uma missa em arrependimento diante do seu Diós.

Você é a América deles, hoje, Vini.

Consegui ler e ver tudo que passou pela minha frente nestes últimos dias, sem evitar a revolta nos meus poros pelo mata-leão que você recebeu, sem desviar o olhar dos tweets do presidente da la Liga, sem fugir das imagens de arquibancada – umas atuais, outras de sempre – onde legiões de racistas se manifestam sem quaisquer observações da Justiça espanhola, seja desportiva ou não. Li e vi tudo, tudo que consegui. Inclusive belíssimas jogadas suas, que por instantes me fizeram sentir novamente uma leve alegria pelo que o futebol pode trazer, quando tem beleza. 
O pacto da branquitude inclui repetidamente algo que Cida Bento nos lembra no seu livro homônimo: não permitir que pessoas pretas sonhem, desejem ou materializem a possibilidade de deixar para sempre a tarefa de limpar os banheiros dos brancos. Quando uma pessoa preta deixa para trás a herança em definitivo, ela vira uma América para a Espanha.
Vi que o juiz foi demitido. E acredito que essa é uma manobra ineficaz do velho poder: envia um recado à sociedade através de um gesto, uma pessoa (ou pequeno grupo) que é punido, exposto, como se esta fosse a demanda. O juiz, branco, viverá sua vida e deve receber uma bela grana nessa demissão. Os sete torcedores que deverão ser punidos, idem. O jogador do time adversário que te agrediu, também. Apesar de merecerem as devidas punições, eles não são nada mais que um recado estrutural do colonizador. Uma missa em arrependimento que não serve a nada. Já que Diós não virá pessoalmente pedir desculpas a Exu pelas heresias dos seus. É preciso arrancar a cruz dos nossos chãos.

Ontem eu vi as crianças novamente, quase adormecido no sofá enquanto a casa, silenciosa, ecoava sons de um quintal que preciso lembrar que existe. Dos Erês com pés de vento.

Pedro Barros Fonseca

pedro fonseca

pai de João, Irene, Teresa e Joaquim.

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