Olho de Peixe.

A varanda da casa de Miguel Arraes em Barra Grande, Alagoas, é larga. Quem tem muitos amigos e amigas precisa ter varandas largas. Sentar ao lado dele numa roda, naquela varanda, aos vinte e poucos anos, em 2003, ganharia um significado maior na minha vida anos depois. Ali, no entanto, outros significados foram absorvidos em mim. 
Ele havia sido o primeiro a sentar. Pedro, seu filho, havia ido me buscar na casa onde eu estava hospedado, a exatos 30 passos da sua varanda. Era a casa de José Ximenes, pai da minha amiga querida Cláudia, que havia me convidado para passar um fim de semana despretensioso – mas o mar de Barra Grande é imprevisível no que pode nos trazer. Atravessei a areia fofa segurando o violão que Pedro havia me feito levar, mas sabendo eu o feito que estava para acontecer. Sentei ao lado do seu pai e, sem muito o que dizer, cantei.
O álbum Olho de Peixe havia sido lançado exatos dez anos antes. Lenine e Suzano sabem da importância deste álbum para a música brasileira, mas não sabem da importância na minha vida. Conto agora.
Depois de uma e outra canções, cantei Leão do Norte.
Um gole no uísque e doutor Arraes, ao meu lado, fala com sua voz de overdrive.
– De quem é essa música?
– Lenine.
– Lênin?
– Lenine.
– Mas Lenine, como Lênin.
– Ele mesmo. O senhor o conhece?
– Conheci agora. Você canta de novo?
Cantei. E cantei mais de dez vezes naquela manhã e tarde. 
– Como ele conseguiu essa façanha, que coisa bonita. Uma história inteira numa canção. Onde está esse Lenine?
Lenine estava na minha formação como gente. Antes de tudo, quando fui arrebatado pela mesma Leão do Norte e todas as que dançam ciranda com ela no Olho de Peixe, fui tocado por uma sensação até desconhecida de pertencimento. A música que abre o álbum, Acredite ou Não, foi a primeira canção que cantei em público na minha vida, num sábado pela manhã, em 1997, ao lado dos amigos de colégio que se tornaram, também, meus irmãos não-consanguíneos de uma vida de música, até aqui. Não vou listar aqui a minha ligação com cada música daquele álbum. A questão aqui é outra.
No outro sábado, aquele em Barra Grande, foi Arraes que se manteve disposto, ao meu lado, a ouvir Leão do Norte inúmeras vezes, intercalando outras músicas que toquei na varanda larga. Nas últimas vezes, ele me parava. Mamulengo de São Bento do Una? E eu assenti com a cabeça, seguia. Auto de Ariano Suassuna no meio da feira de Caruaru? Assenti novamente.
– Pedro, venha cá. Você conhece esse rapaz?
Não era sobre mim. Era sobre Lenine e uma canção que ele mesmo qualificou.
– Este hino de Lenine, Pedro. Você conhecia?
Pedro também assentiu.

*

Em 2012, marquei uma reunião com Kaká Mamoni no seu escritório no Rio, na Cinelândia. Kaká era produtor de Lenine. Abri o computador e o primeiro slide tinha o seguinte texto: 

OLHO DE PEIXE, 20 ANOS

Deixei o PDF com Kaká e posso ter dito – não lembro – algo como: "seria um sonho se isso acontecesse".

*

No dia 10 de maio deste 2023, na varanda larga da minha casa, sentei para um café pós-almoço e abri o celular sem pensar. Passei os posts para lá e para cá, sem pensar. Vi a capa do Olho de Peixe no perfil de Anna, parceira de Lenine. Eu gosto demais da voz de Anna. Vez por outra mando uma mensagem de saudade qualquer e ela sempre responde com sua voz larga feito varanda. Pedrinho, querido. Sempre começa assim. Ainda não consegui mandar uma mensagem de saudade para ela, porque desde aquele post, quando ensaio a mensagem, acredite ou não, a voz embarga.

*

Conheci Lenine em 2005 na sala do meu compadre Lula Queiroga, com quem naquele ano dividi inúmeros projetos e mais farras ainda. Tinha o costume de entrar sem bater, porque Lula não é de pedir que peçam licença. Ele dá licença de um jeito generoso que só ele, aprendi logo. Quando entrei, a cena era Lula do seu lado de sempre. E na cadeira onde eu costumava sentar para tomar um café, estava Lenine com um violão. Entre os dois, um papel e muitas palavras. Sob o Mesmo Céu era a canção que estavam avistando como paisagem. Naquele mesmo ano, no Rio, ouvi a primeira versão da mix no carro de Lenine, na zona sul da cidade. Meses depois, ele estava cantando a canção na comemoração do Ano do Brasil na França.

"A gente veio do futuro conhecer nosso passado", diz um trecho.

*

Esta carta está sendo escrita nove dias depois do post de Anna no Instagram, anunciando que 30 anos depois, finalmente, Olho de Peixe está disponível nas plataformas de streaming. Esta carta está sendo escrita 18 anos depois de eu conhecer Lenine, compondo. Esta carta está sendo escrita 20 anos depois de Miguel Arraes ouvi-la mais de uma dezena de vezes. Esta carta está sendo escrita 26 anos depois que cantei Acredite ou Não. Esta carta está sendo escrita 3 anos depois de Lenine aceitar meu convite para cantar comigo uma canção chamada Metade que Intera, no álbum da banda que nasceu em 1997, impactada por um álbum de 1993, depois de Anna responder à mensagem-convite dizendo: 


– Pedrinho, querido. Lenine adorou a música e vai gravar.

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Hoje, 19 de maio de 2023, tem show de Lenine em Brasília. É o primeiro que não vou desde que estive numa mesma cidade onde ele se apresentaria. Mas a verdade é que sinto como se estivesse lá. E como se a boca do palco fosse uma enorme e larga varanda onde podemos constatar que a onda ainda quebra na praia.

*

– Sou de Pernambuco, eu sou o Leão do Norte.
Sorriu feliz com a descoberta e deu mais um gole no uísque.


Pedro Barros Fonseca

pedro fonseca

pai de João, Irene, Teresa e Joaquim.

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Um maio qualquer.