Lava.
Quatro pessoas tocaram atravessaram com seus dedos delicados a membrana da minha alma, ontem, domingo, 7 de maio de 2023. Posso escrever errado seus nomes, perdoem, mas tento aqui: Luiza, Alessandra, Grace, Rafael. Esta carta é para elas, para ele, ou mesmo para você que, em algum momento, vai atravessar a última fronteira entre nós para um simples, singelo, gentil e raro abraço.
Tal qual no dia em que o mundo nos pariu, como lava que persiste contra a gravidade, primeiro, para só depois entregar-se a ela e escorrer lentamente por encostas antes lisas, criando relevos, ranhuras, falésias, cicatrizes na terra, lá estávamos nós, nus. Desprovidos de quaisquer proteções sociais que nos vestissem, que nos cobrissem com roupas de esconder. Inteiramente nus, com lágrimas de magma esquentando nossos olhos, enquanto dizíamos coisas sem sentido. No encontro entre nus, é isso que se espera da voz, que falhe, que erre, que deslize e que não diga nem em palavras, nem em tons, o que pretendíamos dizer enquanto a palavra morava apenas no nosso pensamento.
Palavras ainda em pensamento são vulcões inativos.
Dei a volta por trás da contadora de histórias, filmando as costas da sua atuação divertida e hipnotizante e a frente das crianças sentadas na primeira fila, olhares que não piscam, mãos que se esfregam, dedos do pés esticados, a respiração presa num lugar entre a boca do estômago e a boca do rosto. Quando desliguei a câmera do celular, o primeiro abraço. Obrigadas pelas cartas, tenho recebido, tenho lido e guardado no email, num lugar onde eu possa reler facilmente. O segundo abraço veio bem na sequência, precedido por um eu te amo impossível, um eu te amo de quem sequer me conhece, que dirá amar. Por que me ama, o que eu te fiz?, perguntei. Você está me mandando cartas. Um pouco depois, eu já estava finalmente de frente para o espetáculo, uma pessoa bem diante de mim vira-se, me olha como quem vê um velho conhecido e se apresenta como uma velha conhecida, num abraço generoso e desapressado. Parecia não ser bastante e, na hora em que estava colhendo filhas e filhos, o último abraço caminha lentamente na minha direção, abraço grande, sorridente. Vou embora como se este pudesse ser um domingo normal. Não foi. Domingo normal não tem gente nua se encontrando no meio da praça.
Trocar cartas e trocar abraços nos escancara.
O comentário que mais tenho recebido nas entrelinhas das respostas que vocês me trazem aqui, sem dúvidas, é sobre algo que tem sido chamado de "coragem de se mostrar". Saibam que me causa um estranhamento enorme me ver pelos seus olhos como alguém que tem coragem de algo. Quanto a se mostrar, aceito que este é um recurso que encontro há anos para me aproximar de pessoas que, por sua vez, desejem o mesmo. Dos abraços, nunca espero o pior, ainda que tenha sabido por notícias do front que a guerra anda feia e que há pessoas que andam recusando abraçar desde o fim da pandemia. Por não esperar o pior, sou este que ao ver braços se alargando como horizonte, retribuo sem pensar. O que tem sido, também, um recurso para aproximações afetivas. Voltamos, assim, ao escancaro que trocar cartas e trocar abraços nos possibilitam.
Ontem, por causa deste espaço aqui de troca de cartas, ganhei quatro belos abraços. Estava num parque na Asa Sul, em Brasília, onde tive a sorte de ver com meus olhinhos o retorno do projeto Histórias no Parque, que estava pausado desde que precisamos nos isolar. Cantamos, ouvimos histórias, dançamos uma ciranda, nos vimos de perto. Os abraços que ganhei chegaram como carta-resposta a algo que escrevi e entreguei. E fez com que outras pessoas, além de mim, se mostrassem, se revelassem, se escrevessem em gesto, fala, lágrima, sorriso.
É quando estamos assim, escancarados, que as nossas melhores versões são seladas e enviadas aos destinatários. Recebi de Luiza, Alessandra, Grace e Rafael nada menos que Luiza, Alessandra, Grace e Rafael. Nus, sem roupas que cobrissem suas vergonhas, já diria a avó de alguém. Escritos e descritos por vozes falhas, recados soltos, palavras que ainda não tinham deixado o pensamento. Pessoas escorrendo feito lava, rasgando a Terra.
Acabo de lembrar, enquanto tento escrever eruptivamente esta carta, que falei sobre abraços recentemente, naquela carta sobre Taline. Pergunto-me neste instante se estou sendo repetitivo, se já me falta assunto embora com tão poucas cartas. Ou se há mesmo importância em contar de abraços presenciais quando nos vemos apenas aqui, por linhas de código. Ou se a vontade das trocas, das cartas, dos abraços são uma ideia particular que apenas vez por outra se manifesta nas outras pessoas que estão aqui.
A sabotagem termina quando descubro que o assunto de hoje é lava.
Estamos nos escolhendo o tempo inteiro. É isso que cabe para quem deseja ser gente, ser parida ou parido pelo mundo para escavar caminhos. Entramos em erupção nus. Em abraços sem aviso prévio, em cartas sem selo, em pensamentos que cospem fogo quando saem pela boca de forno. Forno. Tirando o bolo. Jacarandá.
Quem aqui trouxer primeiro uma gota de lava que desenhe na montanha que nos afasta, traga depressa correndo que hoje é segunda e os domingos não tardam em chegar.
Pedro Barros Fonseca