Que dia é hoje?
Parei o que estava fazendo pois hoje é Dia do Trabalhador e, em tese, eu não deveria estar trabalhando. Quando meu corpo sentiu isso, quis doer. Na nuca, nos braços, no estômago. Sinalizou que tinha recebido a carta enviada pelo pensamento e anunciou que iria fazer uma daquelas greves rápidas que nos paralisam. Desviei a rota dos pneus queimados por dentro das minhas vias e vim parar aqui, neste nosso encontro particular.
Como você tem lidado com seu trabalho? Ou prefere chamá-lo de ofício?
Pergunto com aquele misto de esperança e medo da resposta, porque a nossa arena profissional tem sofrido nos últimos anos – ou é impressão minha? Antes que você me responda com sua carta, contando sobre como tem visto a sua carreira, preciso te confessar que em 2018, por escolha própria, implodi minha vida profissional por conta da vida pessoal.
Morto de vergonha pela crise e dolorido pela separação que atravessamos naquele ano, fiz uma escolha de me trancafiar num casulo. Uma decisão que parecia lógica: preciso cuidar muito dessa relação aqui e ter um trabalho que me tire de casa é uma ameaça enorme. Larguei todos os projetos que estava fazendo. Me desliguei de pessoas. Desconectei de processos de aprendizagem que até ali haviam sido importantes. Perdi dinheiro. Perdi reconhecimento. Perdi um espaço importante do chão e precisei criar pontes novas sobre este abismo – com pouco material. Eu tinha duas cordas velhas (a fotografia e a escrita) e uns pedaços de madeira para pisar (amigas e amigos bons que, silenciosamente, ficaram ao meu lado de forma tão humana).
A fotografia foi bem num aspecto (guiei cinco turmas do meu curso) e mal em outro (não sei vender fotografias). A escrita foi mal em todos os aspectos. Quanto mais eu lia os outros, mas tinha vergonha do que eu mesmo escrevia. Fui estudar com estas pessoas que lia para tentar escrever. Nada funcionou. Argumentos de livros na gaveta, uma falta de coragem tremenda, aquela decepção que temos quando achamos que estamos nos enganando.
Naquele ano de 2018, acordei com as ideias de Lua reverberando na minha cabeça, sentei no computador, escrevi um nome e fiz uma logo: Rede Amparo. Aquilo que Lua estava fazendo era amparo. Amparo soava a mim como o nome de uma mulher que tem colo espaçoso. Amparo é o nome da rua onde fizemos nossa festa de casamento, em Olinda.
Amparo.
No casulo, o ofício é de ficar quieto. Atuei de forma silenciosa, usando o que sabia com fotografia, escrita, direção de vídeos para materializar as ideias maravilhosas de Lua. Eram cursos, jornadas, formações, maneiras distintas de ofertar a sabedoria que ela tem – e que tanto transforma a vida de quem tem acesso a isso. Me tornei uma espécie de agência de comunicação do CNPJ que criamos juntos e que, com Lua, tinha rosto, voz, nome, admiração de um contingente gigante de pessoas, especialmente mulheres, mulheres-mães, mulheres-profissionais que atuam com famílias no Brasil e fora dele. Cada novo material que filmava, editava, escrevia, produzia, colocava no mundo através da Amparo me resgatava uma alegria importante. Fui, ao longo dos anos, pós-2018, sentindo que a Amparo pertencia um pouco a mim também.
Por outro lado, não sentia que eu pertencia à Amparo.
Não seria possível que eu estivesse à frente de algo na Amparo. Não sou especialista em emoções, não sou psicólogo, nem pedagogo. Aliás, eu não sou nada. Não tenho curso superior, não tenho especializações nesta área do cuidado, da atenção, do amparo. Estava escrito com letras garrafais no meu travesseiro e, dia após dia, eu acordei com esta mensagem carimbada na testa: você não é capaz.
Sei que não sou mesmo. Ainda estou aprendendo a cuidar das minhas emoções, que dirá das emoções das outras pessoas?
Durante a pandemia, a desculpa perfeita. Trancado em casa, eu poderia concentrar todos os meus esforços em fazer esta parte de bastidores que a Amparo precisava (produzir vídeos, fazer as campanhas, cuidar das redes sociais, ou seja: seguir no casulo, já que o que importa mesmo e faz a diferença na vida das pessoas – e que não cabe num casulo, e sim em asas abertas e lindas – Lua já tem e sabe muito bem como fazer).
Atrofiei os meus músculos do saber, do desejar, do imaginar, do conquistar, do desafiar, do mudar, do crescer, do estudar, do aprender, do ___________ (me ajuda com essa lista, se já sentiu isso na sua vida).
Não tenha pena, cara leitora. Eu escolhi me punir assim, eu que lute.
A saída da pandemia trouxe um descompasso entre o que imaginei e o que realmente veio. Aquele aspecto tão conhecido por nós, de criar projeções. Além disso, segui firme no meu propósito de ficar miúdo, pequeno, no casulo, como um castigo natural, merecido, ainda por conta de 2018.
O curioso – terapeuticamente falando – é que na nossa relação amorosa tudo estava colocado, conversado, e ambos escolhemos transformar crise em construção. Já na profissão, era como se eu precisasse mesmo ficar quieto, porque fazia parte do meu ritual de mutilação.
Você já ficou presa a um erro do passado? Não recomendo.
Quando saí do modo auto-punitivo, comecei finalmente a deixar o erro do passado no lugar e comecei a olhar com mais delicadeza e gentileza para os erros do presente. Que lindos, eles são. Erros graciosos de quem aprende a aprender e a fazer diferente a partir das suas próprias experiências. Uma prática libertadora.
Hoje, estou trabalhando. Dia do Trabalhador. Feriado. Segunda-feira. A Igreja Católica, sutilmente tirana que é, colocou esses nomes nos dias, ligados aos santos e práticas religiosas, transformando o Brasil num dos únicos (ou o único?) país que não trata os dias com a sabedoria que se teve ao nomeá-los, no passado, mais de 1600 anos antes de Cristo ter nascido. Gosto de pensar que na origem segunda na verdade é o dia da Lua: lunedi, lunes, lundi, monday. Terça, de Marte. Quarta, a vez de Mercúrio. Na sequência dos dias, Júpiter, Vênus e Saturno e, por fim, ou para começar, o dia do Sol, sunday. Estou trabalhando neste dia de sol, apesar de ser Dia da Lua, em Brasília, cerrado brasileiro, e lembro que depois de 4 anos de barbárie na nossa babilônia contemporânea, voltamos a ter gente trabalhando na cidade onde escolhemos viver. Lembro também que no dia 19 de março de 2017, um ano antes de ser 2018, o ano em que parei, estava me movendo. Fui até a cidade de Monteiro, na Paraíba.
Lula estava suado. Cada gota que escorria era uma pessoa tentando chegar perto dele. Coisa de cinquenta mil gotas de um Brasil que esfrega a testa para continuar vendo um palmo adiante, que percebe seu trabalho como nada mais, nada menos, que a sua chance de viver. Cheguei tão perto a ponto de espremer meu pensamento entre "o que estou fazendo aqui?" e "eu precisava estar aqui".
Meu corpo voltou ao calor daquele março, na margem do São Francisco, e me lembrou que lá atrás, dez anos antes daquele encontro em Monteiro, eu estava dentro de um estúdio de gravação com Dominguinhos e Alceu Valença e eles estavam cantando uma letra que escrevi para um jingle do Governo Lula, para falar da transposição do Rio São Francisco.
Hoje, antes de vir aqui escrever esta carta, estava trabalhando e pensando que bom é poder aprender, se reinventar, sair do casulo, existir, ter uma parceira que dá nome a um dia da semana.
Parei para fazer uma lista do que me veio à cabeça em relação aos meus trabalhos. Deu nisso:
Entrevistei Ai Weiwei em Pequim. Ele com uma tornozeleira eletrônica em sua própria casa, vigiado por dois seguranças do governo com cursos acadêmicos em artes plásticas – pedido do artista para que tivesse o que conversar com os algozes.
Perdi um tio para Caetano Veloso – um dia conto isso aqui.
Conheci o Atacama, Istambul e a Amazônia e não sei dizer qual é o mais belo dos lugares.
Tive letras de músicas ou jingles gravadas por Ivete Sangalo, Dominguinhos, Alceu Valença e Lenine.
Cantei ao lado de Chorão, do Charlie Brown Jr.
Fotografei Emicida, Rael, Capicua, Oumou Sangaré, Mário Lúcio, Paulo Flores, Russo Passapusso e Totó La Momposina num único dia, no Rio de Janeiro.
Minha festa de casamento teve show de Lula Queiroga e Silvério Pessoa.
Inclusive, convidei cento e poucas pessoas para esta festa de casamento, junto com Lua. O ano era 2007. Fiz as contas um dia desses e há apenas uma pessoa que não convidaria novamente.
Sugeri uma nota de 10 reais com a foto de Pelé de costas, com a camisa 10. Guido Mantega reprovou.
Assinei o texto de despedida de um shopping center em Higienópolis (cidade de São Paulo) para dona Ruth Cardoso, um dia depois da sua morte – escrevi porque eu a encontrava quase todas as semanas sentada na mesma cadeira, no mesmo horário.
Escrevi dois livros.
Assisti Astor Piazzolla ao vivo.
Quase me afoguei no Beach Park enquanto escrevia um livro sobre o parque.
Depois de um jantar na China, fui convidado pelo então prefeito de Barcelona, Xavier Trias, a assistir à final da Champions League na sua casa, caso o time do Barça chegasse lá. Neymar jogava no clube, que não chegou à final. Quem venceu o campeonato foi o Real Madrid.
Pré-agendei uma entrevista com Manoel de Barros para dezembro de 2014. Ele morreu em novembro.
Fiz uma fotografia linda de Chico Buarque há uns anos e fui ao último show dele em Brasília para tentar entregar em mãos. Numa conversa antes do show, numa roda de amigos, a fotografia foi interceptada por Carol Proner, parceira dele. Nunca conheci Chico.
Conheci Francisco Proner, filho de Carol, parceira de Chico, no dia da inauguração da transposição do São Francisco, na cidade de Monteiro, na Paraíba. Falo já sobre isso.
Fiz um vídeo-documentário com 20 minutos de duração para a Rede Globo sobre os aniversários de Olinda e Recife, que são celebrados juntos em Pernambuco, chamado Duas Cidades. A ideia era colocar no Youtube, apenas. Foi ao ar no dia do aniversário, ao meio-dia, na tv aberta.
Também filmei todo o processo de ensaios da montagem teatral de Hamlet, adaptada por Ronald Daniel. Copiei todo o material para Thiago Lacerda, que estrelou a peça. Perdi minha cópia num defeito de HD.
Sofri um acidente que culminou com a queda de um poste sobre o meu carro no primeiro dia das minhas primeiras férias profissionais da vida.
Fiz mais de 200 shows com uma banda que tive no Recife e acabei largando a agência nesta época.
Recebi uma proposta de trabalho em Barbacena, liguei para um amigo querido e contei sobre o assunto. Ele elogiou (demais) a cidade e a proposta que recebi durante dez minutos, até que uma hora falou "eu adoro as Ramblas". Perguntei: "as Ramblas?". E ele: "sim, vocês vão morar em Barcelona, não é isso?".
Fui ao festival Holi na Índia, voltei com uma exposição pronta e nunca coloquei essa ideia de pé.
Fotografei Anderson, filho de Amarildo (aquele que foi assassinado pela polícia carioca), no dia em que também entrevistei Marcelo Freixo.
Olho para isso e penso que durante muitos anos considerei o meu ofício uma área estruturante para minhas emoções e relações e algo que era tão importante a ponto de me definir. E contei esta história bem contada repetidas vezes, inclusive para mim mesmo.
Neste 1º de maio de 2023, me vejo na obrigação de contar esta história com outra caneta. Esta carta de hoje me escreve em outras linhas, línguas, linguagens, idiomas, sotaques. Reapresenta, a mim mesmo, as palavras que não apagam. A história tatuada em nossos braços como "reencontro eterno". Nossa história. Um trabalho mais árduo, mais profundo, mais complexo – ao passo que também se revela simples, tranquilo, generoso, cuidadoso.
Em 2006, neste mesmo dia do ano, convidei Lua para almoçar. Dois meses depois, casamos.
De lá para cá, o conceito de trabalho foi sendo transformado de forma gradual, mas definitiva. O que cabe na nossa relação, sabemos. O que não cabe, sabemos. Dá trabalho discernir, nutrir, falar sobre o que cabe e o que não cabe numa relação? Muito trabalho. E nos pede muito tempo – não há trinta e poucos anos de idade que possam saber.
Lua e eu precisamos chegar até aqui para saber que existe esse lugar chamado aqui, no tempo.
E nesse tempo, seguimos uma vida absolutamente comum a qualquer casal que escolhe justamente isso: seguir.
Aqui estamos, 17 anos depois, celebrando o Dia da Trabalhadora e do Trabalhador. E vejo que o resultado disso é o que somos. Somos Amparo.
Pedro Barros Fonseca