Não leio sinopses.

Carrego a fama de não ler sinopses. Você deve imaginar o quanto isso já me levou a filmes tristes, peças de teatro com cenografia despencando, mas também a aniversários em dias errados, lançamentos de livros de autoras que não sei quem são, praias com mosquitos, restaurantes de frutos do mar – coisa que sou alérgico.

No final da manhã de quinta-feira, Lua saiu para buscar Irene, Teresa e Joaquim na escola. Pensei que teríamos apoio até pelo menos umas quatro da tarde, acessei um destes portais de vendas de ingresso, achei um cartaz de filme familiar, sim, é aquela produção nova do Studio A24, que tem feito filmes tão legais, esse filme deve ser bom, espera, quem é este ator?, Joaquin Phoenix, ótimo, duas poltronas, confirmar, pagar, que negócio caro, o tal do cinema.

Almoçamos rápido para dar tempo, engolindo assuntos, mastigando o interesse das crianças no fato de que mãe e pai iriam ao cinema bem ali, no meio da goela da semana, quinta. A sessão começaria às 13h30 lá do outro lado da cidade. Fomos.

Beau is Afraid (Beau tem Medo, Ari Aster, A24 Studio, 20/4/2023 – sim, fomos na estreia) é uma sessão de terapia de um neurótico obsessivo apresentada como filme.

Saímos do cinema e tentamos ir na livraria ao lado, que tem um café mediano e uma torta espetacular. Não tinha nem um, nem outro. Voltamos degustando vinte e cinco minutos de especulação sobre a mãe do diretor do filme. E nossas mães. E nós, mãe e pai.

Conheci as melhores pessoas que poderia conhecer sem ler a sinopse antes. Lua foi assim. Num tempo em que namoros não começavam passando uma imagem para a direita. Também não foi um like que me fez ganhar o privilégio de ter amigas e amigos como os que tenho.

O mais radical de não ler sinopses é quando o nosso estranhamento atinge seu ápice ao conhecermos pessoas a quem chamaremos, dali por diante, de filhas ou filhos.

Nunca soube nada sobre ser pai ou sobre ser mãe porque até então a literatura era escassa e também porque os dois que carregavam os títulos, antes de mim, não eram muito adeptos aos afetos. 

Joaquim, o mais recente estranho em minha vida, carimba a última via da afirmação que filho não é reprodução nossa. Ele é uma produção inteiramente nova que gera um impacto tectônico da nossa arena familiar por surpreender radicalmente com suas falas e provocações. Ontem à noite, pediu para escovar os dentes enquanto tomava banho e, antes que eu perguntasse a razão, ele disse "pai, nem sempre eu quero fazer as coisas como elas sempre são". 

Não ler sinopses me faz estar desatento o suficiente para que bons estranhos habitem minhas casas. 

Prestei atenção a uma frase recorrente que pronuncio sem mais nem pensar quando alguém anuncia que vem a Brasília.

– Fica aqui em casa.

Posso já ter convidado você que me lê agora, inclusive, e aproveito para dizer que não é pessoal sobre você. É pessoal sobre mim. Dizer sim, manifestação comum a quem não é bom colocar limites, era comum a mim – diria a analista de óculos enquanto folheia um livro que todos os arrobas do Insta já leram. Calma, Lacan. Veja bem. 

Veja bem. Eu gosto mesmo e gosto demais de receber em casa quem sinto que traz essa encomenda valiosa do estranhamento. Recosto a cabeça no divã mais tranquilo.

Inclusive, parênteses aqui.

(

Havia uma analista, escritora, de quem um dia me despedi como paciente sentido por saber da sua competência. Urgia em mim a mudança e não fiquei preso a ela, segui. Anos depois, aqui mesmo em Brasília, a encontrei num curso de literatura. Depois, na pandemia, em mais um curso de literatura online. Eis que este ano, com o cérebro contaminado pelos saberes de Anna Tsing, no carnaval, a encontrei novamente. Estava com filhos, parceiro, família, sorriso largo. Assim também estava eu. Apresentei Lua, em festa – que depois me perguntou quem era aquela e deu risada com este tipo de encontro carnavalesco, sem máscaras. 

)

Pessoas entram e saem dos meus blocos e tenho facilidade em lidar com isso. Já a pulseira vip de acesso ao camarote, casa, tem uma outra simbologia. Sigo dizendo fica aqui e é sincero. Fica mesmo. Tem um quartinho que cabe.

Neste 24 de abril de 2023 em que escrevo esta carta, depois de 47 anos de vida, 1 casamento, 411.720 horas de carnaval, 1 coisa preciso dizer: as 2 filhas e 2 filhos que habitam minha vida são a sinopse não lida da maior importância. Este lembrete que Joaquim sintetiza quando me alerta que nem sempre fazer o que sempre se faz é a escolha mais acertada, prazerosa, feliz. Cabe em algum lugar por aqui, imagino que por aí também, um fazer que ainda nos desperte o frio na barriga ou o arame farpado delicadamente na nuca ou o papel áspero na lousa da escola.

Estas filhas e filhos são as salas de emergência nas salas de cinema particulares que temos. Ao menor sinal de fumaça, que tenhamos a sabedoria de não fazermos o que sempre costumamos fazer. 

Pedro Barros Fonseca

pedro fonseca

pai de João, Irene, Teresa e Joaquim.

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