Alma de lama.

Em cima da mesa, Célestin Freinet seguia mirando o pequeno garoto à sua frente, escrevendo coisas aleatórias a pedido da diretora da escola – enquanto a mãe devia sorrir um sorriso performático sobre a performance do próprio filho, reprodução sua, a materialização da projeção de que somos imortais e filhos são a nossa existência estendida.


Vinte anos depois, esta mesma mãe iria fazer uma intervenção medicamentosa no filho, entregando-lhe mensalmente um remédio psiquiátrico, alegando que ele tem um diagnóstico de síndrome do pânico e, por isso, um tratamento perene com essa droga tão violenta seria necessário. Fundamental.

A partir dali, os efeitos. A tranquilidade que ela dizia que ele sentia na verdade chamava-se letargia. A nova capacidade de lidar com os tormentos da vida, dormência. O sono profundo era, no fundo, um desmaio noturno que nem um terremoto o acordaria. A maneira saudável de lidar com o trabalho era uma cegueira branca tal qual Saramago propôs.


Sempre me senti incapaz de deixar o remédio. A primeira razão é que não me conhecia mais sem ele. Qualquer angústia, ansiedade, medo, vergonha ou culpa provavelmente me levariam a uma crise (este era o nome dado pela psiquiatra-mãe) que explodiria meu peito, me faria perder o ar em definitivo, ou quiçá me causariam um AVC tal qual meu avô sofrera, "tão jovem, coitado, por conta de uma simples emoção forte que sentiu num jogo do Santa Cruz, no estádio do Arruda". A ideia da hereditariedade veio a mim antes da ancestralidade. Então o avô que ficou 20 anos numa cama, sem interagir com o mundo, mas sendo cuidado pela avó sem vida, era uma imagem que me despertava o pavor. Sempre tive muito medo de emoções mais fortes. A segunda razão que me faria não largar o remédio psiquiátrico por 20 anos era, na verdade, um segundo diagnóstico maternal. Essa sua pressão está mesmo muito alta, filho, também tenho isso, seu pai tem, é melhor cuidar logo. Vinte e poucos anos, mais uma droga diária fazendo com que eu ficasse muito próximo da imagem ancestral dos indígenas que se depararam com os portugueses invadindo violentamente sua terra: era sabido que ali havia uma alma, mas será que aqueles portugueses tinham mesmo um corpo? Aquilo era um corpo? Será que isso aqui que tenho é um corpo com uma alma dentro, como sempre me disseram? Poderia listar outros medos pontuais que me fizeram, durante duas décadas, não considerar a hipótese de largar o medicamento; poderia apresentar detalhes de conversas na terapia, espaço onde escondi durante todo este tempo que quem havia me "receitado" este medicamento psiquiátrico havia sido minha mãe – eu costumava chegar a um novo terapeuta dizendo que o especialista anterior é que havia me orientado nesta direção; poderia escrever sobre as propriedades ilusórias que o medicamento parecia me trazer nas relações amorosas, uma ausência que me fazia, no fundo, não saber o que sentia pelas pessoas com quem me relacionava.


Durante duas décadas, desaprendi a sentir.

Em dezembro do ano passado, num episódio de invasão, desrespeito e tirania (que eu já tinha certa familiaridade, mas não elaborava com maturidade a respeito), esta mãe passou de um limite que até ali eu não havia sentido na pele. Ela colocou meus filhos e minhas filhas em risco.

Fui o filho que contou a seguinte história durante toda a existência: 


– Eu sou Pedro e o medo é a emoção que mais tenho proximidade. Tenho muito medo de tudo. E acredito que isso se deve ao fato de ter uma mãe superprotetora, que cuidava tanto de mim que nunca quebrei um osso, sempre estive são e salvo.


Sempre estive em risco. Na violência do padrasto que arrombou a porta do meu quarto numa tarde qualquer para reclamar do cheiro da minha comida. Na violência do bullying sofrido na escola sem que um adulto responsável estivesse olhando para mim. Na queimadura em casa pela manhã para ser socorrido apenas à noite. Na tristeza por não ter recebido uma única visita de amigos ou amigas em casa (para não ser injusto, preciso intervir para dizer que é modo de falar – há, sim, uma tarde, uma única tarde, já com 16 anos, em que um amigo da escola passou a tarde na minha casa para tocarmos violão; mas saiu no início da noite assustado com o clima na casa e o comportamento agressivo no ambiente). Na violência de, já adulto, ser chamado na casa da mãe sem saber o porquê, chegar lá e ela estar na calçada com quinze sacos plásticos azuis e dizer "estou indo morar no seu apartamento". É necessário dizer que todos os acontecimentos estavam permeados – ou hermeticamente fechados – por um silêncio brutal. Jamais fui chamado para conversar com esta mãe. Em nenhum dos fatos descritos ou em outros.

Aliás, há outros momentos que me causam muitíssima vergonha e não quero partilhar aqui.

Em dezembro, movido pela coragem de agora não mais ocupar o corpo de uma criança, e sim ser um pai que protege e cuida das filhas e filhos, fechei as portas da vida para essa mãe, numa troca de palavras onde ela fingiu não entender o que estava acontecendo e, depois, desencadeou a reação mais dolorosamente evidente do seu descompromisso.


Hoje, dia 18 de abril de 2023, passaram-se quatro meses sem que esta mãe enviasse uma mensagem ou email, telefonasse, desejasse ver seus netos, sua nora ou eu. A despedida foi uma mensagem de WhatsApp – "Ok".

Aprendi afeto na artesania. Estava comigo, desde sempre, em forma de argila disforme. O torno só passou a ser usado a partir da necessidade humana, ancestral, de dar utilidade ao viver. Tenho aqui as unhas sujas, a palma da mão áspera, sinto o cheiro da mistura enlamaçada (e próspera) no corpo – água e barro. Fiz vasos delicados, que quebraram. Confeccionei cinzeiros onde apaguei cigarros-muletas quando precisei. Tenho uma coleção de canecas feitas especialmente para as amigas e amigos que tinham sede. Tigelas, bules, pratos, cumbucas, panelas, colheres – montei mesas e mais mesas para me alimentar junto dos meus. 

Minha mãe apertava a ponta do meu nariz quando eu era criança, dizia que era para eu ter o nariz afilado, para que não parecesse com nossa família por parte de avó. Minha mãe dizia que achava bem feito Dilma cair, porque era uma mulher burra. Minha mãe xingava, quase que silenciosamente, meus filhos e filhas quando estavam agindo como, bem, como crianças na sua casa. Minha mãe deu livros e mais livros, por anos seguidos, do mesmo autor para o meu pai, através de mim (já que eram separados e não lembro de terem sido casados, nem há registro fotográfico desta relação). Era uma forma de agredi-lo através de mim e não percebi que era ponte neste trânsito violento.


Demorei a enxergar conexões óbvias nesses e outros assuntos.


Após o incidente de dezembro, tenho me sentido frágil demais, quebradiço, diminuído a ponto de me olhar no espelho e não reconhecer este apequenado ser humano de unhas sujas, palma da mão áspera, corpo enlameado e olhos sem brilho. Por outro lado, tenho me sentido inteiro, alegre, esperançoso, disposto a sujar de argila quem quiser um abraço.

Meu terapeuta, que não sabia até dezembro da verdade sobre quem me receitou remédios, soube. Estou há 3 meses sem tomar nada, nem o remédio psiquiátrico, nem o medicamento para a pressão arterial. Tenho sentido tudo. Angústia, medo, raiva, felicidade, tesão, cansaço, nervosismo, calma – e põe aí o que quiser. Voltei a sentir tudo. E não pretendo me despedir dessa sensação maravilhosa de ver o corpo voltar à alma, o lugar certo de cada coisa. O corpo e a alma girando, corpo e barro, água e choro, a fluidez que faz aquilo que não tem forma ganhar vida.

Minha alma é de lama.

Descobri que não sou reprodução de ninguém, mas uma produção inteiramente nova. Descobri que meu nariz tem origem, feita à mão, vindo de um barro simbólico de um chão que não é este onde piso agora. Descobri que a parte que me foi sequestrada está de volta em mim. Descobri que o melhor jeito de libertar minha mãe é entender que um filho nem sempre é desejado e que ela precisa seguir seu caminho sem que eu seja um obstáculo que ela precise destruir para caminhar. Voa, mãe. Você ainda tem tempo e vida.

O torno está girando. Tenho aqui um punhado de barro molhado. Minhas unhas seguem sujas. Talvez seja difícil escrever uma carta agora, peço desculpas.

Pedro Barros Fonseca

pedro fonseca

pai de João, Irene, Teresa e Joaquim.

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