Não me afogo em quem não sou.

ICostumava cantar em rodas de luau onde quer que fosse – desde que fosse em praias de águas mornas, areias fofas, pessoas extraordinárias em círculos virtuosos de afeto: a vida vem em ondas como um mar, num indo e vindo infinito.

O tempo não passa. O que passa é a chance. As duas senhoras sentadas impávidas, diante de uma piscina aquecida e, mais grave ainda, com ondas. A inteligência artificial cria horizontes devastadores para quem gosta da natureza. Uma espécie de ChatGPT hipnotizando as crianças enquanto mães e pais adoecidos preferem o celular ao convívio. Um fim de mundo artificial acoplado às ideias concretas de finitude da vida, a visão daquelas mulheres que tecem uma trama que apenas a idade é capaz de lhes permitir tecer sem furar as pontas dos dedos. Faço de tudo para ouvir a conversa preciosa. Não consigo. As ondas quebram o clima, o DJ que só conhece música sertaneja quebra minha chance. Fico com a imaginação e nomeio aquelas duas senhoras do tempo, talvez irmãs, talvez amigas, talvez desconhecidas – como todas e todos somos uns dos outros, umas das outras, até a morte.

As pessoas desconhecidas me atraem desde sempre. Ontem mesmo fomos até a Vila Planalto pedir uma pizza para levar para casa e emendei uma conversa durante o preparo com João, dono do estabelecimento que funciona apenas para entregas há mais de 15 anos. O iFood reteve 30 mil reais dele este mês e o sono também anda retido, já que a retidão de João pede que ele pague às pessoas que trabalham com ele em dia – já é noite, a Vila Planalto parece um subúrbio delicado de qualquer centro urbano, locus familiar a quem aqui me lê, por certo. Me despeço do homem de cabelos grisalhos na intenção de deixar gentileza no espaço que alimentaria minha família dali a pouco. 

Depois do jantar as crianças se encaminham em paz para seus refúgios entre os dias. A noite as espera em quartos pouco arrumados e muito confortáveis para desligar a chave do tempo. Gosto de pensar com as crianças que o tempo também dorme.

Vamos em busca do último respiro de amor num fim de semana que tinha tudo para dar errado – e não deu. A série chama-se Tiny Beautiful Things (Pequenas Delicadezas), da autora Cheryl Strayed (vimos na plataforma Star Plus). Conta a história de uma mulher que busca sua história. No encontro com sua mãe, com sua filha, com seu parceiro, revela as grandes dores de ser gente e escolher que vida irá levar.

A vida vem em ondas. E nos leva.

Na escolha por passar um fim de semana em família, sinto o sarrabulho. Percebo que errei em tudo. A escolha do lugar. A escolha da data. Os acasos colaboram com minha culpa: encontros desafortunados. A água quente demais, artificial demais, música sertaneja demais, comida ruim demais. Meu desejo era o de menos. Menos barulho, menos caos. Queria minha família num daqueles luaus, areia fofa, águas naturalmente mornas, canções de fazer sentido.

Uma chance desperdiçada. 

Penso que talvez escrever cartas às segundas não seja uma boa ideia. É dia de terapia, dia de agenda insana das crianças, dia de colocar em risco as verdades postas, dia de elaborar livros, séries e diálogos. Dia de abrir o ChatGPT e provocá-lo:

– O que duas senhoras podem estar conversando enquanto observam o movimento de uma piscina de ondas artificiais? Escreva no estilo de Gabriel Garcia Marquez.

O robô responde:

"Enquanto as duas senhoras se sentavam em suas cadeiras dobráveis, à beira da piscina de ondas artificiais, seus olhos seguiam a agitação da água. O sol escaldante do meio-dia iluminava a cena com uma intensidade implacável, fazendo com que as ondas parecessem quase vivas, como se fossem um animal em seu habitat natural.

A primeira senhora, uma mulher de cabelos grisalhos com um vestido florido, suspirou e disse: "Lembro-me de quando eu era jovem, e não havia nada assim por aqui. A água era simplesmente água, sem essa agitação toda".

A segunda senhora, com um chapéu de abas largas e um vestido de linho branco, riu e respondeu: "Ah, sim, mas isso é o que chama a atenção dos jovens hoje em dia, não é mesmo? Eles gostam dessa emoção, dessa sensação de perigo."

Eugênia e Olga. Assim as batizei, sentadas numa pedra artificial, na frente de uma piscina de ondas artificiais, ouvindo uma música artificial, num lugar igualmente postiço. 

– Olga, o que você teria feito diferente?

Barulho das ondas. Leo Santana gritando. Apito do salva-vidas que nada salva.

– Sabe, minha amiga, já perdi muito tempo imaginando o que as ondas pensavam sobre mim, supondo como este horizonte que se move diante de nós veria a minha existência contemplativa. Ouvi que era quietude, passividade, inércia, até. Demorei muitos mares e marés para me perdoar por querer apenas o possível, deixar o impossível para as que gostam de se aprisionar no que não são, nem serão. Antes disso, pisei em sargaços. Ouriços. Águas-vivas. Deixei rasgos dos meus passos sobre corais que separavam meu próprio horizonte-existência da existência-horizonte alheia. Me aventurei em quebra-mares por acreditar em contos de pescadores e sereias. Naufraguei e acordei com gosto de sal na boca, desmaios de inconsciência juvenil. Usei boias pensando que me livraria do trauma e mergulharia outra vez. E as ondas seguiam suspirando sons, músicas, ruídos. Acreditei que era sobre mim, eu que estava apenas sentada, vivendo a vida possível, que sempre teve a aurora mais linda, dia após dia. Hoje já não tenho mais chances a perder. Pouco me importa o que as ondas levam e trazem. No fim das contas, todas elas cansam de idas e vindas, procuram uma areia para ser baía. Faz tempo, muito tempo, que já prefiro a vida em que estou, Eugênia. Não me afogo em quem não sou.

Pedro Barros Fonseca

pedro fonseca

pai de João, Irene, Teresa e Joaquim.

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