Conseguir escrever é o de menos.
A diretora da escola havia chamado na sala dela e sinto-me confortável em dizer que o recado dado pela professora não havia me assustado até ali. Ao abrir a porta da sala, entretanto, o medo tomou conta do espaço entre minha nuca e meu calcanhar. De costas para a porta por onde entrei e de frente para a diretora – que, por sua vez, estava de frente para mim, com um sorriso estranho – estava a minha mãe.
Se a minha mãe estava na escola, algo muito errado eu deveria ter feito.
Sentei na única cadeira disponível e olhei para as duas, percebendo que elas também me olhavam. Oi, filho. Oi, Pedro. Oi. Está tudo bem. Está? Está. Chamei você e sua mãe aqui porque soube de uma história sua. Pensava em cada palavra dita pela diretora. Nada me vinha como conclusão. Aquelas caras poderiam ser muitas coisas.
O olhar de duas mulheres – mais um homem desconhecido no porta-retratos, eram três olhares ao todo em minha direção.
A cadeira disponível.
A mesa de madeira escura.
Uma história minha?
Perguntou a diretora.
Aquelas caras poderiam ser muitas coisas. Por não haver espelhos ou vidros ao redor, não consigo lembrar a minha cara reflexiva nesse instante, nessa cena.
Ela entregou um papel em branco e um lápis e pediu para que eu escrevesse algo. Devo ter tremido, mas não lembro. Escrevi meu nome. Escrevi meu endereço. Escrevi o nome da escola. Larguei o lápis como quem, agora sim, deve ter feito algo errado. Larguei o lápis apressadamente como quem larga uma arma depois de usá-la.
– Viu? Ele consegue escrever.
Disse Fátima – que não era a minha mãe.
Engraçado pensar que na época do verão mais intenso, gostava de me esconder no inverno; e agora, quando me aproximo do inverno mais rigoroso, penso ardentemente no calor do verão. Envelhecer tem sido um gozo elástico, desapressado. E gozo que não se apressa – e se preza – adia a morte. Num país etarista, brutalmente etarista com as mulheres, envelhecer parece morrer no cotidiano, a morte sorrindo um sorriso pontual e nos beijando com a boca de óleo essencial de hortelã. Observo meu processo particular de envelhecimento, portanto, desinteressado, pelo privilégio que não escolhi, mas tenho. Ser homem.
Na estação mais fria que se anuncia para mim, estou distraído vendo a noite clara de verão da lua crescente, que antevê a sua imagem espelhada na Terra, vejo também a Lua que se agiganta enquanto aprende e ensina – ela estudou numa escola fundada por Paulo Freire, no Recife, daí os verbos aprender e ensinar seguirem sendo conjugados conjugados. Esta Lua, amiga que fiz na adolescência dela, viveu a infância num lugar que jamais visitei, uma família. Nunca tive, não saberei. Escuto com atenção as histórias da relação desta agora mulher com sua mãe, outra mulher, e sua irmã, mais uma, e aprendo que aprendi o que era amor sem nunca ter sabido. Vejo esta Lua ocupar o céu estrelado do quarto onde também durmo e penso na primeira carta que preciso escrever. Uma carta de amor.
O clichê acorda num sobressalto pelo cochicho de Donna Haraway no meu ouvido: "minha estória é um conjunto de estórias das gerações em ciclos; minha história diz respeito a herdar o ofício de escrever estórias em ciclos, trançadas [...]". Olho para cima e para o lado e Lua já não está mais lá. Para ser grande, é preciso espaço. Ela sai cedo em busca do espaço para o corpo, o cuidado, o exercício. Vai na direção deste espaço. Corre. Tomo um banho rápido enquanto escrevo esta ideia de carta no vidro do box, me perco ao ver o nome Haraway derreter, escorrer, dissolver – o Antropoceno faz isso. Haraway, melt away, dissipar. As palavras fazem o trabalho sozinhas. Discordo de Haraway na grafia de estória. Mas isso já é outra.
Talvez você não saiba e não a culpo por isso, a internet tem lá seus esconderijos, mas a mãe de Lua é Lydia. É também jornalista, escritora, doutora - mas não doutora porque é advogada, que isso não é ser doutora. É Doutora porque tem um Doutorado, entre inúmeras coisas que a compõem. Lydia é sabida demais e com as filhas desenhou num lugar menos etéreo que um box de chuveiro a ideia de família. Cada qual se apresenta ao mundo hoje como uma produção humana complexa e inteira, ao passo que simples e fracionadas em dias que sim, e as conheço de antes de serem parceira, sogra e cunhada.
Já vi Lua minguar e Lydia foi colo.
Já vi Lua cheia e Lydia foi música.
Já vi Lua nova e Lydia foi maré.
Vejo Lua crescer e Lydia ser o telescópio que de longe vê de perto.
– A minha mãe é uma mulher muito boa.
A caminho do lugar que escolhemos para respirar um fim de semana, numa estrada tão esticada que nos fez dirigir por doze horas seguidas e conversar pela vida inteira, Lua disse esta frase com o choro desentalando o que filhas crescidas sentem no lugar mais recôndito. Percebo que esta mãe, que já foi fardo por ser justamente tão boa, hoje é um norte delicado de admiração de uma mulher, agora, que não é simplesmente filha. A mulher Lua observa a bondade da mulher Lydia e constrói seu próprio e único caminho. E cresce, cresce, cresce.
No lugar onde estamos, tudo que não foi domesticado se move. A água da nascente vai, a descomunal copa calva da paineira vai e volta, o vento que seguiu na carta da semana passada agora volta. Nós, os únicos inertes e domesticados ouvimos notícias de João, Irene, Teresa e Joaquim, que estão com a avó que nos diz, com a voz de cansaço, descansem. O choro é de contentamento pelas filhas e filhos que se revelam, pela avó que os observa, pela vida que nunca para.
Na volta do lugar onde estávamos até ontem, numa estrada que agora mais parece uma língua de tamanduá em busca da última formiga do cerrado, choramos juntos pela falta de palavras. A estrada não acaba nunca, a conversa não se move. Saudade da conversa indomesticável dos amantes jovens que ao menor sinal de wi-fi cortado, inventam assuntos tantos que parecem estar se conhecendo todos os dias. Nos chega a dolorosa constatação de que, em alguma medida, desaprendemos a conversar algumas conversas, apesar de estarmos dispostos a isso com uma frequência maior do que as histórias que ouvimos por ali, nos esconderijos secretos dos amantes que dormem no amor romântico e acordam no amadurecimento da relação. O silêncio corta quilômetros, pedágios, caminhões de nove eixos. O eixo dos nossos desejos mudou? O eco dentro de um carro é infinito. As palavras somem por um longo tempo, até que abrimos o portão de casa e agora já é tarde, há quatro crianças e uma avó com saudades distintas e muitos desejos de falar e ouvir o que temos e não temos a contar.
E esta é uma carta de amor, ainda, mesmo que este amor seja a última formiga do cerrado e haja uma longa estrada nos cortando as fronteiras e as feridas, impondo pedágios caríssimos, formigando as extremidades das nossas línguas esticadas ao máximo no fundo da terra, tentando se reencontrar em palavras que neste instante não temos.
Torço para que Irene e Teresa olhem para esta mulher um dia e movam suas copas, suas águas, seus ventos na direção dela, naturalmente. Que essas meninas crescidas possam dizer sobre a sua mãe algo que as faça chorar numa estrada sem fim, esta vida dormente.
Que suas histórias escritas sejam a herança de outras histórias escritas que não se repetem, ciclos do minguar e do crescer que se assemelham e se distinguem na intensidade dos desejos que elas sentem pelo mundo, por vezes eclipsando quem as orbita.
Numa relação que se aproxima do Saros, o que me anima a sonhar com o que virá no ciclo novo, retomamos a conversa tão logo a primeira fresta de luz perfura a cortina do quarto onde eu tentava dormir olhando para o teto, e ele despertara com aquela Lua crescente olhando firme e inerte nos meus olhos aguados de quem está com o coração formigando. Bom dia. Bom dia. Vamos falar? Hoje não há estrada para atravessar.
E isso nos move como paineiras leves com raízes ancestrais.
Célestin Freinet, o único homem em cena, preso no porta-retratos capenga em cima da mesa escura de madeira, iluminado dramaticamente por um abajur, continuava me encarando enquanto as demais já haviam desistido de mim – e seguiam uma conversa incompreensível sobre ir e ficar, adiantar e atrasar, abrir e fechar espaços, uma estrada sem sentido que, pelo visto, não me levaria mesmo a lugar nenhum.
Conseguir escrever é o de menos, diretora. Penso em silêncio.
Pedro Barros Fonseca