Xote da Separação.
Sem saber nomear direito o que estava sentindo, deixei calado por dentro. Levei para a terapia com o apelido de angústia, conversei com um amigo e mencionei que estava atravessando um momento difícil demais com minha mãe, disse a Lua que tinha uma urgência: precisava de dois dias para finalmente escrever o livro infantil que estava na gaveta.
Fui para a Chapada dos Veadeiros com a mesma sensação de sempre quando viajo sozinho: que porra estou fazendo nessa estrada sozinho com tanto filho e filha para cuidar e tanto trabalho a ser feito?
Encontrei uma playlist pronta do Spotify chamada This is Dominguinhos assim que saí pelo portão de casa e cinquenta quilômetros depois, o diagnóstico. Eu estou doente de São João.
Assim como não existe amor em SP, não existe festa junina em Brasília.
Passei por isso também no carnaval, mas já superei o trauma e dou risada quando lembro das orquestras daqui.
Chorei um bocado no caminho de ida e isso também me causou auto-espanto. Fazia tempo que não chorava aquele chorinho bom de cantar uma música que, pelas razões do afeto, destravam o mar salgado que liga nossa memória aos olhos. Chorei bonito quando Dominguinhos disse "estou de volta pro meu aconchego" com aquela voz de quem está contando uma entrelinha particular da sua vida mas que, por esses mistérios da arte, contam sobre nós também. Chorei rindo, chorei chorando, chorei cantando, chorei (ainda) pensando que porra estava fazendo naquela estrada sozinho.
Você já sentiu uma vontade danada de voltar para casa no quilômetro cento e dez? Esse sintoma deve ter nome e prometo levar mais uma vez à terapia. Esse assunto rende e estou precisando fazer meu dinheiro render.
Na segunda noite na Chapada, fui jantar com uma velha nova amiga que contou que estava de alguma forma tensa, ali, por estar comigo, porque Lua e eu de alguma forma levamos a ela uma sensação – algo como se a gente fosse importante, de alguma forma, algo que soa engraçado demais para mim que vejo o trabalho de Lua como grandioso (e entendo como ela chegou lá) e vejo o meu como um apêndice rompido, pequeno e doloroso, já que até agora não descobri o que estou fazendo da vida, no âmbito profissional.
A conversa, depois disso, ganhou uma leveza, porque parece que a nova velha amiga tirou um peso do ombro dela ao me contar isso, relaxou, danou-se a falar da vida, contou o que andava fazendo, sempre com uma voz mansa e convidativa. No meio dessa leveza toda, ela e perguntou sobre o nosso ano passado, o tempo que passei no Ceará (ela é de lá) e revelou de uma forma bem natural, como quem conta que o prato que escolheu está gostoso, que naquele momento leu um post de Lua sobre despedida e que teve certeza que estávamos nos separando. Ela certamente não percebeu, mas nesse momento eu voltei minha alma para o carro e tornei a ouvir Dominguinhos por dentro.
Eu me separei de mim.
Fiquei com essa frase até o fim do jantar, até o fim da noite, até o fim da viagem ligeira de dois dias. Peguei a estrada de volta e ela estava no banco do passageiro, a frase: eu me separei de mim. Cantando junto. Minha vida é andar por esse país – a gente cantou com Seu Domingos e Seu Luiz bem alto, rindo da estrada tão curta que nunca acaba.
Não vou aqui posar de velho místico cachoerístico da ayahuasca, coisa que não sei ser, mas os dois dias que fiquei comigo foram um recado que talvez você já tenha recebido também. Vale a pena a gente ir ali longe para ficar mais perto. Lua repete incessantemente seu movimento em relação à própria vida, e entendo que há uma perspectiva completamente diferente quando é uma mulher, simplesmente por ser mulher e lidar com um mundo orientado por nós, homens. Tenho consciência de que quando ela ou qualquer uma de vocês pensa nesses espaços particulares da vida, distante da família, do trabalho, das sobrecargas suas de cada dia, a relação com a necessidade deste espaço é outra, urgente, política e humana. E do lado de cá tento olhar para isso sem pensar que ela está se separando de mim aos poucos. Escrevi e ri. É difícil não pensar nisso, toda vez acho que o desejo dela de estar longe diz respeito a mim – no fundo sei que não é; no fundo sei que se for, não há o que eu possa fazer para evitar.
Mas espera, deixa eu voltar para o meu corpo.
Vale a pena a gente ir ali longe para ficar mais perto, eu ia dizendo. Encontrei um argumento, ou desculpa: preciso escrever esse livro. Escrevi. Revisei. Estou feliz com ele. Um dia vocês poderão ler, ainda este ano. Este não é o assunto, volta para a alma, corpo.
Estamos lá cantando a playlist inteira de Dominguinhos, a frase eu me separei de mim e eu, lado a lado, nos olhando e vez por outra nos perdendo em pensamentos observando o movimento dos fios de alta tensão pela janela do carro, aquele desenho de linhas onduladas que parece se conectar ao Bolshoi em desenhos corporais fluidos, simétricos, coisa bonita é um fio de alta tensão quando estamos emocionados.
No passeio ondulado, meu pensamento me dizia que a vida é esse xote que dançamos entrelaçados com nós mesmos e nós mesmas, um corpo duplicado numa única alma que, dois para lá, dois para cá, vai arrastando os nossos pés pela terra, levantando poeiras e circulando pelo salão finito e urgente dos nossos desejos mais íntimos.
Do nada, a frase eu me separei de mim disse, interrompendo Lamento Sertanejo:
– E o São João, Pedro?
A interrogação me fez chorar até lavar o restinho de brasa que ainda alimentava minha esperança de dançar um forró, ouvir um trio pé-de-serra fuleiro, sentir o cheiro de milho, ficar defumado da fogueira e dormir quente por dentro este ano. O São João é a minha festa da vida. Me toca no melhor lugar que enxergo em mim mesmo, de quem celebra a colheita alheia. Eu celebro a colheita alheia. Só que estou tão encapsulado no locus casa nos últimos 4 anos que até para ver a felicidade alheia tem sido difícil. Não encontrar as pessoas, não encontrar os lugares, não ouvir as histórias tem me tornado isso aqui que vocês estão vendo (por enquanto, prometo), um cara qualquer falando de si. Que porra estou fazendo nessa estrada? Daqui a pouco vou receber email de vocês implorando para eu escrever sobre qualquer coisa, menos sobre mim mesmo. Volta para a alma, corpo. Eu celebro a colheita alheia e percebo, triste e tardiamente talvez, que nos últimos anos eu não senti o cheiro do milho que você prepara na sua cozinha. Estar longe disso é estar, também, longe de mim. E isso toca na minha radiola emocional como o Xote da Separação.
Cheguei em casa e, no banco do passageiro, a frase eu me separei de mim cochilava de boca aberta. O som alto tocava "onde está você/apareça aqui para me ver/eu vou gostar demais".
E aqui estou eu, tentando organizar um casamento matuto comigo mesmo, mas pedindo um galho seco que você tenha aí.
Me manda um áudio? Me conta se, quando e como já sentiu que tinha se separado de si própria ou si próprio? E como fez para reatar essa relação? Se todo mundo ajudar com esses áudios, a fogueira acende, a gente dança uma quadrilha e vai dormir defumado de amor.